Futurista e nostálgico: Em seu segundo disco, “Baby blue”, Julia Branco faz reflexão pop-amplificada sobre o tempo

Gargalhadas da bebê de seis meses, pontuadas pelo riso da mãe em resposta. “Baby blue”, segundo disco de Julia Branco, abre dessa forma, com a faixa “In/ to Cora”. Anuncia-se assim, como um disco sobre a maternidade — o que de certa forma é. Mas é mais. A cena registrada ali, Julia e Cora, mãe e filha juntas, é a síntese, a materialização e o testemunho do tempo — esse sim o tema que atravessa o álbum, que sai pela dobra discos, com distribuição da Altafonte, e terá lançamento no digital, em fita-cassete e em LP, além de clipe para todas as faixas. 


Capa do álbum “Baby Blue”

Ouça o disco "Baby Blue" 


A matéria de “Baby blue”, portanto, é o tempo. O tempo afetado pelas condições em que o disco foi feito, sim, como a gravidez de Julia e o nascimento de Cora, a pandemia, as doenças de ansiedade da era digital, as reflexões sobre o lugar da mulher no mundo contemporâneo. O tempo que vai do passado das referências sonoras (de Marvin Gaye à pós-Tropicália) ao futuro que as canções afirmam desejar a todo instante — não à toa, “Carta para o futuro” encerra o álbum, com versos como “Malemolência de quem sabe brincar/ E apostar com vontade no dia seguinte”.


— O nome do disco seria originalmente “A dança da memória” — conta Julia. — Um título duríssimo, mas que trazia ali a ideia do que queria falar. Comecei a pensar o disco no auge da pandemia em 2020. Comecei a esboçar canções pensando naquele momento, na coisa do “cadê o futuro?”. 


No centro das reflexões da cantora, estava sua geração (ela tem 37 anos), uma “geração do entre”, como ela define: meio analógica, meio digital; meio nostálgica, meio futurista. Dos  versos de Julia à produção de Ana Frango Elétrico, passando pela estética dos clipes (cada canção ganhará um vídeo, sendo que dois já foram lançados) é esse o lugar em que “Baby blue” se instala. 


— Queria que o álbum soasse futurista e antigo — explica Julia. — Gravei pertinho do microfone, Chico Neves (engenheiro de som do álbum e comandante do Estúdio 304, onde Julia gravou) notou. Eu queria algo vibrante, perto, algo que remetesse à memória afetiva. E que também levasse muito pro futuro, tentasse entender que futuro é esse. Chamei Ana pra produzir muito por isso também, porque ela tem muito essa pesquisa sonora no trabalho dela.  


“Baby blue”, a canção que dá título ao disco, aponta para o desejo do amanhã, dando cor a ele. Parceria de Julia com Bruno Cosentino, ela traz na letra — sobre uma cama de elegância pop e melodia envolvente que faz pensar na MPB radiofônica da primeira metade da década de 1980 — versos como “Eu e você/ Encapsulados/ Num futuro todo, todo azul”.


“Baby blue”, o título do álbum, cruza vários sentidos, explica Julia:


— “Baby blues” é um termo usado pra se referir a um estado que a mulher pode ter depois do parto. Você fica melancólica, tem uma queda hormonal. Tem também o blues como desejo sonoro. Falava muito no início que queria que o disco soasse como Marvin Gaye, que tivesse essa coisa de dançante meio calmo, essa malemolência que vem do desejo do blues. 


Há ainda o que Julia chama de “o azul que me persegue”, e do qual ela foi se dando conta só depois do título escolhido:


— “Soltar os cavalos”, meu primeiro disco, tem capa azul. Minha mãe escreveu um livro pra mim quando eu era criança chamado “Julia toda azul”. A Cora tem olho azul, mil signos vão surgindo.


Baby blue | faixa por faixa


Dançante, “Fim e começo”, parceria de Julia e Siso, se refere diretamente à gravidez, ao que a cantora sentia, na mente e no corpo: “Gosto de metal pesado na boca”, “Quero deitar, tô tão enjoada”. Fim de um tempo, começo de outro. Na canção, na vida, ele (o tempo) chega a interromper seu curso sob o impacto da chegada de um novo ser: “Eu vou me abrir/ Pra você chegar/  O mundo todo vai parar/ Só pra você nascer”.


Assista ao clipe de "Fim e começo"


“Silêncio” e “Tempo lento”, ambas feitas por Julia e Guilherme Lírio, conversam no entendimento da beleza e da força do vazio, num mundo regido pelo excesso. A primeira é sobre a consciência de que “nem tudo que eu sinto tem palavra“.


— Foi a primeira canção que compus no violão, ou seja, que partiu da música e não da palavra, como sempre foi o mais natural pra mim — conta Julia. — Gostei quando o refrão me levou pra essa ideia de que “tem muita coisa que é guardada em silêncio”.


Por sua vez, “Tempo lento”, cadencia o tempo já em seu arranjo de bolero-reggae, numa frequência que se expande pros versos: “Eu sou do tempo em que tudo era lento/ Não tem nada pra ontem aqui”.


“Infinito” é parceria inédita de Arnaldo Antunes e Márcia Xavier, com a qual o compositor presenteou Julia. Na canção, melodia e letra se costuram num tempo circular, sem início e fim, numa lógica totalmente diversa da corrida frenética, capitalista, na direção de um suposto progresso.


Com um humor sonoro e poético que remete aos momentos mais descontraídos de Rita Lee, “Quase te esqueci” é assinada por Julia sozinha. Feita a partir da troca de e-mails da cantora com Caetano Veloso — ou melhor, na maneira como ela lida com essa dinâmica —, ela é uma canção sobre ansiedade, sobre a sabedoria de evitá-la e respeitar a mágica do tempo das coisas: “Se lembro de uma coisa ela demora pra ser/ Se esqueço ela se movimenta no silêncio”.


Caetano retorna como autor de “Lost in the paradise”, lançada em seu “álbum branco” de 1969 e agora regravada por Julia. A canção é carregada do espírito futurístico-nostálgico do disco, atmosfera realçada no arranjo da releitura. A cantora também estabelece conexões com a maternidade: ela brinca que a expressão “perdida no paraíso” descreve melhor a condição de mãe do que o clichê “padecer no paraíso”.


Assista ao clipe de "Lost in the paradise" 


“Fora da curva”, de Julia e Guilherme Lírio, trata da inadequação frente às expectativas tradicionais — a inadequação de Julia, de sua geração, da ideia de uma maternidade na qual caiba a carreira artística. 


— Quando soube que estava grávida, fui tentar lembrar de outras cantoras que tiveram filhos: “Rita Lee, Luedji Luna…” — lembra Julia. — Queria ver se rolava, me tranquilizar. Rola.


“Ponto de virada/ Carta para o futuro”, parceria de Julia e Guilherme Lírio, encerra o álbum. Em seus versos, atesta a incerteza deste tempo “entre”, a esquina do antes com o depois que ali remete diretamente à chegada de Cora, mas que explode em sentidos mais amplos: “Meu corpo se espalha/ Só pra você chegar/ Tô cheia de perguntas/ De discos pra criar”. 


No fim, o ouvinte se dá conta de que tudo até ali, desde as gargalhadas de Cora na primeira faixa, nos encaminha para a última palavra do disco, que Julia declama sobre a base de samba-reggae espacial: “Sim”.




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